Opinião do conselheiro
Mauro LimaAranha-*
TOC TOC: ou, a parte e o todo
Um destes sábados à noite, para não fugir à regra paulistana, fomos ao teatro, eu e minha esposa. Depois, a uma cantina. Se trocássemos teatro por cinema, cantina por restaurante, equivaler-se-ia dizer: a permanência do mesmo. Ou não?
Não. O conteúdo da peça (ou do filme) e da refeição instituem a diferença radical, ainda que as formas de um paulistano se distrair sejam pouco numerosas. No caso, acompanhem: “TOC TOC” é uma peça com seis personagens, portadores de transtorno obsessivo-compulsivo. Conversam, trocam idéias e experiências, à sala de espera de um consultório médico, enquanto longamente aguardam o psiquiatra que os assistirá, face ao atraso de um vôo que o retém numa outra cidade.
Este é o argumento. A intenção do espetáculo? Fazer-nos rir.
Para quem não conhece a doença, tudo é muito surpreendente: os rituais de limpeza de um, as verificações compulsivas de outra, a coprolalia de um outro (este, portador da síndrome de Tourette), e assim por diante. Relatam, de início hesitantes, suas várias vivências do TOC e afins. E, após confidências (e muitos pastiches), resolvem expor-se, uns aos outros, às situações específicas que lhes eliciam o TOC: sujeira, dúvidas patológicas, sentimentos de culpa, e outros. Intentam a uma terapia comportamental, improvisada. Que não dá certo. Todos remanescem iguais e, já cansados de esperar o digníssimo doutor, um a um vão embora por fim. Fica apenas o portador de Tourette. E, eis que então, o surpreendente desfecho da peça!!! Que, se eu o revelasse, lhes comprometeria a intenção eventual de vê-la. Mas, o que pensar de tudo isso, até aqui? Em verdade, antes de pensar, rimos. E alguns gargalham. Rimos e gargalhamos exatamente por não pensar? Por que nos faz rir o que, mais propriamente (se meditássemos) nos faria chorar?
O TOC é uma condição humana de doença, de sujeição (pathos) ao sofrimento, com a exata conotação de uma vida em cárcere, em que o tempo se estanca, e nada pode avançar, dado que nada é passível e possível de se dar convictamente por acabado. Uma, duas...mil vezes tem-se que lavar as mãos, verificar que as portas estejam trancadas... nada se apresenta como completo. Incompletude sem fim, medo sem fim. Interminável presente. O tempo é sem fim.
Ora, rimos. Mas, deveríamos rir? Bergson, filósofo francês do fin de siècle, não se espantaria: a comicidade é feita, em grande parte, de um isolamento. Não há, na situação ou personagem que se apresentam cômicos, uma comicidade tácita. Senão, uma indiferença do receptor à sua integralidade, ao seu todo coe¬so e significativo de experiência e vida, dado por fatores e contextos eminentemente pessoais. “(...) Na emoção que nos deixa indiferentes e que se tornará cômica, há uma rigidez que a impede de entrar em relação com o restante da alma na qual ela assenta” e, conclui, fazendo a distinção entre gestos e ação: “Na ação, é a pessoa inteira que se dá; no gesto, uma parte isolada da pessoa se exprime, sem o conhecimento total ou pelo menos separadamente desta”.
Rimos, por vezes, dos gestos alheios. Não de suas intenções, de suas ações significativas. Porque, onde vemos pessoa, não rimos.
Aos reais portadores de TOC (quanto sofrem!) resta o consolo, no entanto, de não serem únicos. Saibam, aliás: este que vos fala, em outros tempos, também o foi.
Ah! Não fosse o remédio (o santo remédio!)... Ao que, então, lhes pergunto: vocês, nesse instante, estão rindo de mim?
*Mauro Aranha é médico psiquiatra e conselheiro do Cremesp
Artigo disponível em : http://www.cremesp.com.br/?siteAcao=Jornal&id=1086