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 Contardo Calligaris - Entrevista para Revista SER Médico(2ª parte)

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Edson
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Contardo Calligaris - Entrevista para Revista SER Médico(2ª parte) Empty
MensagemAssunto: Contardo Calligaris - Entrevista para Revista SER Médico(2ª parte)   Contardo Calligaris - Entrevista para Revista SER Médico(2ª parte) Icon_minitimeSex 07 Nov 2008, 07:04

Ser: Você acha que é viável um psicanalista ser religioso?
Callegaris: Tem exemplos que mostram que sim. Conheci jesuítas, dominicanos que eram psicanalistas e deve haver rabinos psicanalistas.

Ser: Isso não afeta a sua imparcialidade, não contamina a análise?
Callegaris: É uma pergunta para eles, não para mim. Certamente, quem é psicoterapeuta não pode se autorizar a partir da fé ou do conhecimento religioso. Não sei, mas acho que é possível ter convicções religiosas e ser terapeuta. Até porque, no fundo, o ateísmo também é uma convicção. Agora, seria necessário ser um grande teólogo; acho complicado e difícil imaginar se fosse um pastor ou padre da igreja da esquina.

Ser: Você é favorável ao aborto?
Calligaris: Ninguém é a favor ao aborto. Nunca encontrei uma mulher – seja adolescente, jovem, adulta, casada ou com filhos – que tenha feito um aborto e ficado indiferente. Mesmo na Europa, na França em particular, onde o aborto é praticado com mais apoio, de maneira muito diferente do que numa cidade como Boston, nos Estados Unidos, em que as meninas de 16,17 anos entram nas clínicas escondendo o rosto porque têm, no mínimo, sete pessoas com cartazes gritando contra elas. Agora, claro que sou a favor da descriminalização do aborto, e que isso deve contar com apoio psicológico e recursos.

Ser: E da descriminalização da maconha?
Calligaris: Sou a favor do famoso uso médico da maconha que, aliás, parece que funciona efetivamente numa série de casos de inapetência grave. Mas sou a favor em termos. Como terapeuta de adolescentes não me preocupo muito com o uso da maconha por eles. Neste momento, estou mais preocupado com o alcoolismo dos adolescentes, um problema de saúde pública de proporções muito mais graves, também pelas conseqüências. Dirigir bêbado é um negócio muito perigoso. Enquanto o álcool passa certa segurança, com a maconha o cara fica na dele. O único problema que tenho com uso da maconha pelos adolescentes é o seu efeito depressivo. Tenho alguns critérios ridículos: tudo bem se o paciente fuma no fim de semana, numa noite com os amigos; agora quando ele começa a fumar regularmente, sozinho e de manhã, começo a me preocupar.

Ser: A depressão, a anorexia e a bulimia são doenças do mundo moderno?
Contardo: A depressão, a anorexia e a bulimia sempre existiram. A depressão era chamada “a melancolia dos monges”, um dos grandes temas da vida monástica dos séculos XI e XII na Europa inteira. E como se entendia a tristeza dos monges e das monjas? Essa tristeza era considerada um grande pecado, uma espécie de insulto contra a beleza da criação. Para dar um exemplo mais recente, no começo do século XIX o espírito romântico era moda absoluta. Entre 1900 e 1930, na Inglaterra e na França, a pessoa tinha que estar triste e, se possível, parecer um idiota. Agora, para mim, como psicodinamicista, a depressão não descreve uma personalidade.

Ser: A depressão não tem nenhuma relação com o materialismo do mundo moderno?
Calligaris: Todo mundo associa, mas eu poderia objetar esse pensamento. Todo nosso funcionamento é baseado na insatisfação do desejo, na idéia de que isso é capaz de desdobramentos infinitos. E se você encontrar o objeto final da sua insatisfação, tudo pára, porque não precisa comprar mais nada. Bom, só existe um objeto com essa função, que é justamente a droga. Quando alguém me pergunta como se faz para ser feliz ou se existe a pílula da felicidade eu respondo que sim, existe: é só injetar heroína na veia duas vezes ao dia e o cara passa a viver uma espécie de continuação pequena de orgasmos silenciosos a cada três palavras. Então a insatisfação permanente é uma fonte de depressão? Penso que não, a insatisfação permanente é o que nos projeta para frente.

A depressão tem mais a ver com a perda do desejo do que com o desejo insatisfeito. Eu me lembro de visitas a mulheres de 170 quilos – no norte dos Estados Unidos – que não saíam da cama, circundadas por salgadinhos e assistindo à televisão, sem abrir uma janela por quatro dias. Isso é um exemplo de depressão. O que aconteceu foi que a descoberta dos medidores dos níveis de serotonina nos encorajou a fazer da depressão uma “doença”. Mas, na verdade, há uma multiplicidade de quadros muito diferentes, com talvez algo em comum para alguns. Não vamos nos esquecer que os inibidores funcionam em 37%, 38% dos casos. Com os inibidores dos efeitos da serotonina, hoje temos um conhecimento melhor do que há 10 anos, encontramos uma descrição química, não de todas, mas de uma boa parte das depressões. A partir disso, passamos a falar da depressão como uma coisa só, o que não é verdade.

Ser: Um clínico geral, por exemplo, pode fazer um diagnóstico de depressão em cinco minutos, porque o paciente preenche alguns clichês. O que você acha do tratamento da depressão com medicamentos?
Calligaris: Não tenho contra-indicação. Discuto medicação o tempo inteiro – com o psiquiatra para quem eu encaminho o paciente, com o próprio paciente. Quanto mais consigo me informar sobre o que concerne ao mundo da medicação, melhor – embora não queira receber representante. Mas não se medica a tristeza. Uma pesquisa australiana recente mostrou justamente o número impressionante de clínicos que estão medicando a tristeza! Um psiquiatra sabe que se medica a depressão. Mas são duas coisas diferentes, não se medicam estados de ânimo.

Ser: Mas antidepressivos são prescritos em consultórios de clínico geral.
Contardo: É verdade. E quando isso entra na Pediatria, o estrago é imenso. Quando os pais não toleram a visão de qualquer estado de ânimo negativo de suas crianças, claro que alguns médicos também podem cair na armadilha: “pelo amor de Deus, faça-a sorrir”. Aí, fechou a armadilha.

Ser: Existem dois grandes desafios na medicina. A indústria farmacêutica se digladia para encontrar o melhor medicamento para hipertensão arterial e, também, para a felicidade. Recentemente um editorialista de uma revista médica escreveu, de forma sarcástica, que o medicamento já foi encontrado: “o mesmo remédio para ser feliz também consegue baixar a pressão, que é a atividade física, que libera endorfina...”
Calligaris: Mas é cansativa. O pessoal precisa fazer muito exercício físico para conseguir um pouquinho de endorfina, dá muito trabalho (risos).

Ser: A medicalização de doenças como a depressão é um avanço ou prejuízo para a psicanálise?
Calligaris: É um avanço. As pesquisas mostram, paradoxalmente, que no caso de depressão clínica, uma terapia pela palavra consegue resultados apreciáveis em 35%, 36% dos casos. E a mesma pesquisa mostra que uma combinação de remédios e psicoterapia dá resultados cumulativos, em 65%, 66% dos casos. Que fique claro que há avaliações subjetivas sobre o valor dessa pesquisa, mas não existe conflito nenhum. Porém, o que a gente encontra muito freqüentemente é a medicação abusiva. É preciso entender que a medicação também é um negócio. Além disso, seus efeitos são idiossincrásicos; a pessoa que acredita ter problemas vai ter que experimentar porque existe certa tendência progressiva de pedidos por parte da família, dos amigos próximos e companhia. Mas medicar traços de caráter e estados de ânimo é um problema. Não tem cabimento entrar com medicação porque o paciente é impulsivo ou xinga o pessoal no trânsito. Isso é ótimo para as empresas farmacêuticas, mas é preciso considerar que a normalidade de cada um é diferente.

Ser: Em uma entrevista, há tempos, você falou que o brasileiro tinha uma espécie de complexo de inferioridade permanente em relação às metrópoles culturais. Como é que se materializa esse complexo?
Calligaris: Ele está melhorando em relação aos anos 80 e 90 ou mesmo antes. Ainda há algo desse complexo, mas mudou muito. Hoje, por exemplo, uma porcentagem maior de brasileiros consome produtos culturais nacionais, assiste ao cinema nacional e não tem mais aquela posição do tipo “ih! filme nacional eu não vou”. O mesmo vale para a leitura de autores nacionais. Claro que a indústria nacional do cinema e do livro melhorou infinitamente, além da qualidade das traduções. Houve uma mudança grande nos últimos 20 anos, sobretudo em relação ao Brasil ser um centro de produção cultural.

Ser: Sobre a formação histórica do brasileiro você, que vem de um outro país, percebe se ela se reflete em nosso caráter?
Calligaris: Não acredito que a filogênese se transforme em ontogênese, mas acho que a história de nossa ascendência faz parte de nós. Um dos grandes conceitos da psicanálise é a idéia de que a confiança básica no mundo é algo que se tem porque o mundo o acolheu com certa simpatia, seja pela figura da mãe ou quem ocupou o lugar dela. Agora, por exemplo, não sei se é possível ser judeu sem ter uma falha na confiança básica, que pode ser pequena, escondida, mas uma suspeita de que o mundo não é um lugar decididamente confiável.

Ser: E o brasileiro?
Calligaris: Estou chegando no caso brasileiro, que tem bastante traços interessantes. Primeiro, é uma colônia que não conquistou sua própria independência, não lutou pelo fim da escravatura e isso, sem dúvida, contribui para uma espécie de ojeriza ao conflito e certa dificuldade em tomar posição. Pode ser um fato positivo, de certo ponto de vista, mas tem uma série de conseqüências problemáticas.

Ser: A corrupção é um traço dessa formação histórica?
Calligaris: Historicamente ela é grande. Mas, aí é um traço, classicamente. O curioso é que o Brasil produziu um pensamento sobre si próprio de excelente qualidade nos anos 30. Mas o que a colônia e a experiência brasileira, em geral, produziram de invasão da esfera pública pela esfera privada – isso está em Sérgio Buarque de Holanda –, explica a corrupção como uma coisa perfeitamente tolerável. No fundo, não reconhecemos muito bem, enquanto brasileiros, a existência de uma esfera pública autônoma, que não seja simplesmente um lugar comum de saque. Aos poucos isto muda porque está se constituindo certa tradição democrática.

Frases

"Em geral, não gosto de instituições, detesto as massas e comportamentos de grupo.
A insatisfação permanente é uma fonte de depressão? Eu penso que não, a insatisfação permanente é o que nos projeta para frente.
Todo nosso funcionamento é baseado na insatisfação do desejo, na idéia de que isso é capaz de desdobramentos infinitos. E se você encontrar o objeto final da sua insatisfação, tudo pára.
Medicar traços de caráter e estados de ânimo é um problema. Não tem cabimento entrar com medicação porque o paciente é impulsivo ou xinga o pessoal no trânsito."
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